O suicídio é o tema do momento. Mas em vez de falarmos sobre o problema estamos preferindo a saída fácil de achar culpados.
Muitas pessoas me pediram para falar sobre a série 13 reasons why, enorme sucesso do Netflix que conta a história de uma jovem se mata depois de gravar fitas dizendo as razões para seu ato. Coincidência ou não, nesse mesmo período o tal desafio da Baleia Azul começou a ser comentado (no Brasil, porque a notícia é velha), trazendo para o primeiro plano o tema do suicídio entre jovens.
Infelizmente, contudo, as respostas fáceis fazem sucesso e rapidamente ganham ares de verdade, já que o raciocínio simplista é sempre preferido ao trabalhoso exercício de pensar. E assim, em vez de aproveitarmos o gancho para discutir seriamente o suicídio, criamos um pânico em torno de um seriado, de um jogo, de uma moda qualquer, como se elas fossem as culpadas pelo problema.
Cacemos a baleia azul. Censuremos o seriado. Quebremos o termômetro para não ver a febre. Em que momento da vida o adulto fica tão distante do jovem a ponto de não ser mais capaz de compreendê-lo? Todo mundo sabe que os adolescentes são impulsivos, imaturos etc. Mas acreditamos mesmo que eles são tão estúpidos a ponto de se matar porque um jogo mandou? Ou porque viram na TV? Sério? Ou será que são pessoas já com alto risco de se matar que encontram nisso um estímulo final?
O suicídio é um grave problema no mundo todo – a cada 40 segundos alguém se mata no planeta. Entre os jovens, é a segunda causa de morte. E é nessa faixa etária que o comportamento mais cresce. Só que tudo isso já vem acontecendo antes de Baleia Azul, internet, Netflix, Hannah Baker ou youtubers. Na base de dados de mortalidade da Organização Mundial da Saúde é possível criar gráficos com vários tipos de informação. Eu pesquisei um pouco sobre prevalência de morte por suicídio entre pessoas de 15 a 24 anos nas últimas três décadas.
Pelo menos desde meados dos anos 80 a taxa de suicídio nessa população praticamente só faz crescer. E vamos continuar achando que o problema é um jogo? O jogo, o seriado, as notícias espetaculosas, tudo isso pode sim contribuir para a morte de jovens. Desde que eles estejam doentes – estima-se que em até 90% dos casos de suicídio um transtorno mental esteja presente – e não se tratem.
Para um adolescente se matar, portanto, não existem 13 razões porquê. Existe praticamente só uma: nosso preconceito com os transtornos mentais. Sim, pois não basta ter depressão para cortar os pulsos – é preciso que essa dor seja negligenciada, estigmatizada. Isso aumenta a culpa de quem sofre, acrescentado mais camadas ao sofrimento. E de quebra ainda reduz a chance de procurar tratamento. Até que a angústia se torna insuportável. Aí sim, ver um seriado, receber um desafio, o que for, pode estimular a busca por uma saída trágica.
Matemos a baleia azul. Vetemos os seriados. Façamos o diabo. Mas enquanto não compreendermos que os transtornos mentais são sérios, são comuns e não são motivo de vergonha, facilitando o acesso ao tratamento de todas as formas possíveis, sempre haverá uma nova moda para empurrar quem está à beira do precipício.
Leitura mental
O mundo avançou tecnicamente em todas as áreas, legando à arte, à intuição, papeis secundários. Esse movimento não poupou a Medicina, constantemente criticada por ser cada vez mais fria, mais focada na doença do que no doente. Esse problema não é novo, contudo, como mostra Stefan Zweig em A cura pelo espírito (Zahar, 2017). O livro traz a biografia de três personagens, Franz Mesmer, Mary Baker Eddy e Sigmund Freud, que entre o final do século XIX e começo do século XX forçaram os olhos dos médicos de volta para a alma, para o que no humano há de transcendental. Escrito na primeira metade do século XX, tanto Mesmer como Eddy já tinham sido definitivamente desacreditados pela ciência (a psicanálise só perderia o status de científica com Karl Popper, lá pela metade do século). Mas Zweig retrata a luta solitária desses pioneiros das curas mentais não para defender seus métodos científicos, e sim para não nos deixar esquecer de que, para além de qualquer dado frio há um ser humano integral que sofre. E carece de cuidados integrais.
Publicado no Jornal o Estado de S.Paulo em 19.04.2017