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Sobre a moeda e outros trocados

André Perfeito
08/02/2019



 Fiz um comentário sobre criptomoedas que deixou alguns bastante incomodados. Argumentei que a moeda é o Estado e que estes experimentos virtuais não poderiam ser agrupados como moedas, afinal uma moeda só existe se tem por trás as garantias que só um estado pode dar.

Os que se incomodaram dirigiram a mim as palavras gentis de sempre e os elogios de costume e tinha dado para mim que não iria responder às demonstrações explícitas de carinho, mas o tema da moeda é oportuno para uma ou outra reflexão.
 
Há alguns economistas e leigos de maneira geral que tem uma ilusão muito bem organizada na cabeça sobre os primórdios da espécie humana. Nesta ilusão, os homens e mulheres viviam livremente na natureza e trocavam livremente o resultado do seu trabalho. A moeda surgiu neste sentido como um desdobramento natural das trocas. Em algum momento uma dada mercadoria se tornou referência das demais e assim se tornou moeda, possuindo as características tautológicas de uma moeda.
 
Essas características são três, a saber: meio de troca, unidade de conta e reserva de valor. No mundo encantado desta ilusão sobre os primórdios humanos a troca acontecia de maneira suave entre as partes; sendo assim, vivíamos um paraíso econômico e social.
 
Nada mais ingênuo. Para começar, só há trocas se há propriedade privada e se há propriedade privada sempre haverá aqueles que por incompetência ou má sorte não a possuem e, sendo assim, irão tentar pegar na força a riqueza de outrem.
 
Para evitar isso é necessário que se estabeleça força policial de uso comum e só o surgimento disso já garante que surja ali o Estado, seja lá que tipo seja, podendo ser um faraó, um presidente, um xamã ou um rei. Alguém tem que organizar o jogo entre os homens e mulheres e para isso se criam instituições.
 
Pronto, já temos o Estado, mas a confusão dos iludidos é ainda pior...Uma moeda como argumentei tem três características tautológicas (meio de troca, unidade de conta e reserva de valor), mas ela não fica de pé se não tiver mais duas outras condições, a saber, elasticidade de produção próxima de zero e elasticidade de substituição próxima a zero. Isso quer dizer algo muito simples.Se as pessoas pudessem produzir dinheiro não haveria motivos para eu produzir mais nada, afinal porque cargas d'água eu iria me especializar em fazer pão para vender para alguém para pegar dinheiro para comprar sapatos se posso eu mesmo produzir dinheiro?

Uma moeda, ou dinheiro como coloquei aqui de maneira solta, não pode ser facilmente produzida, caso contrário haveria uma sobre oferta desta mercadoria que revelaria que seu valor é baixo, logo que não vale muito e assim haveria inflação corroendo duas das suas propriedades tautológicas: unidade de conta e reserva de valor.
 
Uma moeda perde a função se todo o dia que for comprar algo, esta coisa esteja cotada em mais unidades dela (inflação) e também não faz sentido eu guardar algo que perca valor todo o dia (acabando assim sua reserva de valor).
 
Quando dizemos que algo tem elasticidade de substituição próxima de zero queremos dizer que ninguém pode não aceitar essa moeda. Um comerciante não pode não aceitar os Reais no seu bolso. O curso da moeda é forçado numa sociedade. Qualquer sociedade que há de fato uma moeda e o motivo é simples mais uma vez.
 
Lembra quando disse que numa sociedade onde há trocas há simultaneamente propriedade privada e assim sempre haverá aqueles que irão querer roubar a propriedade dos outros por um motivo ou por outro? Então. Aí que o Bicho pega.
 
O Estado tem que se financiar para poder bancar o serviço de Polícia (já tentamos cada um de cuidar da própria segurança, mas é incrível como isso sempre acaba em guerra fazendo que um ganhe sobre o outro o que força que este imponha sobre os demais sua vontade. Que puxa...) e para financiar isso ele cobra impostos. Até aí nenhuma surpresa, a questão é que ele, Estado, só vai aceitar o pagamento de impostos no dinheiro que ele criou.
 
Posso até encontrar uma concessionária muito louca que aceite balinhas de hortelã para eu trocar por um carro, mas tenta pagar em balinhas os impostos que você deve... Você vai preso na hora.
 
Já que tem gente que gosta de fábulas vou deixar essa aqui mais realista para ajudar você, meu querido austríaco, pensar melhor e ficar ainda com mais raiva do estado. O Estado emite uma quantidade X de dinheiros por ano e diz para a sociedade: produzam! As trocas se operam na sociedade, as pessoas trabalham criando coisas novas e depois de um ano o Estado vem e diz: 10% é meu para bancar a polícia. Percebe? A moeda é um ato de violência do estado, é onde opera sua vontade sobre o coletivo.
 
Então acabemos com o Estado! - branda um comunista de mãos dadas com um austríaco num boteco na Vila Madalena. Abaixo a tirania do Estado! Dou de ombros e solto uma risada. E como resolver o problema do roubo, retruco irônico. Se isto não te convenceu - e não deve ter convencido, afinal vivemos num eterno Fla-Flu - tenho outra história para te contar.
 
Houve um tempo, no início do período do capitalismo comercial, onde cada casa bancária emitia títulos referentes aos depósitos feitos em seus cofres pelo seus clientes. Depois de algum tempo aquele título começou a valer ele mesmo como se fosse ouro e se começaram a transacionar os títulos deixando assim bem guardadas as barras de ouro num cofre qualquer.
 
O problema é que quando se tem vários bancos emitindo moeda ninguém sabe ao certo a credibilidade de cada casa bancária e assim começou a surgir taxas de câmbio entre um título de um banco e de outro.
 
Você chegava no Porto de Amsterdã com um título dizendo que você tinha depositado um quilo de ouro no banco XPTO e queria comprar uma tonelada de tecido. O dono do tecido te olhava no olho e dizia: nã... do banco XPTO eu faço por 0,8 o valor de face, se fosse do banco YGHT aí eu fazia um pra um.
 
A confusão foi tão grande que os bancos se uniram para criar um banco central que emitisse a moeda e que cuidasse das reservas do sistema.
Não existe forma, nem nunca existiu, moeda independente do Estado. Imaginar que existiu moeda sem Estado é uma ilusão que surgiu para apoiar o raciocínio, mas que tem gente que vê como verdade.
 
Esta razão sem juízo, que acreditam muitos, é o mesmo erro que faz crer num mundo natural entre homens, mas isso deixo para outro dia. O que tenho hoje são estes trocados no bolso.



André Perfeito é economista e mestre em Economia Política pela PUC/SP. Lecionou no departamento de economia da PUC/SP ao longo de 2010 como professor convidado e é membro do DEPE (Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento e Política Econômica do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUC/SP).
Comentários:


B. Dutra comentou em 08/02/2019 - 16:02:49

Trata-se de boa explicação sobre os fundamentos da moeda e o que garante esse papel chamado dinheiro. Mas é uma questão extensa e com varias nuances. Estamos diante de um cenário que as moedas se tornaram caça livre para fins especulativos, e a globalização convergiu para que as operações se processassem em dólar, a moeda americana, dificultando o livre intercambio entre países criando forte dependência.

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