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Inadimplência

Roberto Luiz Troster
21/02/2019



 É um despautério. Cinco milhões de empresas e sessenta e dois milhões de cidadãos têm apontamentos de atrasos em dívidas, é um recorde histórico. A quase totalidade deles não consegue pagar o que deve e todos têm dificuldades em obter créditos nos bancos, no comércio e na contratação de serviços. É um problema crônico na economia brasileira, que piorou nesta década. 

Desde o início de 2010, quando a economia já estava em expansão, a inadimplência cresce a taxas elevadas. Foi uma das causas principais para o arrefecimento do nível de atividade e da crise posterior. Na recessão a morosidade se agravou, e mesmo com a retomada da economia e a queda da taxa Selic, continuou a aumentar.
 
Alguns fatores pontuais, como quedas nas vendas ou problemas familiares, originam uma fração da morosidade. Todavia, a maior parte é causada pelo modelo de negócios de muitas instituições financeiras, não todas.
 
Um caso real ilustra a dinâmica que causa inadimplência. José é médico e tinha um emprego com carteira assinada, um consultório, um plantão semanal, financiamentos compatíveis com seu fluxo de caixa e mais de trinta anos de relacionamentos bancários sem nenhuma anotação negativa.
 
Vivia com um orçamento justo e teve problemas conjunturais de caixa. Preocupado em manter o nome limpo, arrumou mais um plantão e procurou gerentes para adequar seus empréstimos a sua capacidade de pagamento. Sem entender porque, não lhe eram oferecidos empréstimos em condições parecidas às que já tinha. As alternativas disponíveis eram a rolagem do cartão de crédito e o cheque especial, com taxas múltiplas vezes maiores.
 
Apesar da pressão de José, as tentativas para obter financiamentos com condições adequadas a seu orçamento demoraram vários meses, causadas pela lentidão dos emprestadores em apresentarem ofertas razoáveis. Nesse período, sua dívida disparou. Quando conseguiu o que pleiteara, o principal havia aumentado demasiado. Ele tinha sido capturado pela armadilha da dívida.
 
É uma dinâmica perversa que a cada dia piora, em que há sempre uma destruição de riqueza, ou para os credores com perdas de inadimplência ou para os devedores com redução de patrimônio. Foi o caso de José, que conseguiu sair da armadilha vendendo uma casa para saldar tudo. Manteve a reputação de bom pagador, perdeu um imóvel, não deve mais nada e evita bancos.
 
Note-se que o que aconteceu com José é a mesma trama de milhões, com detalhes diferentes. Nos últimos doze meses, mais da metade de concessões para pessoa física foram para o cheque especial e o cartão, excluindo pagamentos à vista. Para empresas houve mais concessões na linha do cheque especial do que na de capital de giro, apesar de ser em média 17 vezes mais cara.
 
Em muitos casos as consequências são piores do que a de José. Atualmente, empréstimos com alienação fiduciária de imóvel permitem a execução sem passar pelo judiciário. É um processo rápido com poucas formalidades. Dessa forma, a casa dada em garantia é leiloada para pagar a dívida acrescida de custos de leiloeiros, advogados e empresas de cobranças.
 
São dezenas de milhares de imóveis, alguns com deságios de mais de 50% do valor da avaliação. O proprietário devedor tem uma perda de capital expressiva e, dependendo do seu perfil de endividamento, ainda fica com o nome sujo e devendo. Uma situação bem pior que a de José, que foi dramática.
 
Nas últimas semanas, em alguns jornais, haviam mais anúncios de imóveis a serem leiloados do que os de colocados a venda e de lançamentos. Além dos impactos pessoais dos atingidos, há um efeito macroeconômico ruim. A oferta abundante de imóveis leiloados fez com que o preço médio real caísse com um impacto devastador na construção civil.
 
O fato é que a intermediação no Brasil é disfuncional. Quatro conjuntos de razões explicam o porquê dessa dinâmica. Um é a miopia. Muitos banqueiros e bancários estão reféns de metas de lucros anuais e de bônus de desempenho. Como a demanda de recursos é inelástica e há total liberdade para fixar taxas, a pressão por subir juros é alta. Há uma preferência por lucros maiores no curto prazo em vez de sustentabilidade e saúde financeira dos clientes.
 
O segundo motivo é que na armadilha da dívida há uma destruição de riqueza com inadimplência. Cada banco almeja aumentar sua participação na massa falida e acelerar a execução de sua parte da dívida. Leva o conjunto a um equilíbrio perverso. É possível fazer uma analogia com a pesca desenfreada que é insustentável. A prescrição é proteger os pescadores dos pescadores. Vale o mesmo para os banqueiros dos banqueiros.
 
O terceiro motivo é a cunha bancária elevada. Tributos diretos e indiretos fazem com que para uma pequena alta na inadimplência seja necessária uma elevação considerável nos juros. Ilustrando o ponto, um banco nas condições atuais tendo 1% de inadimplência ao mês necessita de uma taxa de 55% ao ano para ter lucro zero. Para todos os níveis de taxas, a arrecadação de tributos é maior do que o lucro dos bancos. Quanto mais altos os juros, maior o caixa do governo.
 
O quarto motivo é que não há uma política de crédito responsável. A missão do Banco Central é cuidar da eficiência e solvência dos bancos, não da saúde financeira de cidadãos e de empresas. Falta ao país uma instituição parecida com a ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que cuida da saúde física dos cidadãos, que seja responsável pela saúde financeira.
 
O ponto é que é possível mudar o quadro acima, corrigir rapidamente as disfunções e fazer com que o crédito se torne um propulsor para a economia brasileira, com reduções da inadimplência e aumentos sustentáveis da rentabilidade dos bancos. Para tanto é imperativo uma mudança de paradigma e a adoção das medidas necessárias para uma intermediação adequada às necessidades do Brasil de 2019.
 
O novo governo não tornou pública sua visão sobre a intermediação, ainda. Todavia, algumas declarações até agora, como os desmentidos de aumento do IOF sobre o crédito insinuam que, aparentemente, não mudou. Preocupa.  
 
*Publicado originalmente no Jornal Valor Econômico -  www.valor.com.br



Roberto Luiz Troster é sócio da Troster & Associados, bacharel e doutor em economia pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e pós-graduado em banking pela Stonier School of Banking. Foi economista chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e da Associação Brasileira de Bancos (ABBC), professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e da USP e consultor de empresas, governos e instituições financeiras no Brasil e no exterior, incluindo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
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