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DESFAZER o desenvolvimento para REFAZER o mundo

Edward Goldsmith
23/02/2012



Os artigos de Desfazer o desenvolvimento para refazer o mundo são o resultado do colóquio homônimo organizado em 2002, em Paris, pela associação francesa La Ligne d'Horizon e a revista Le Monde Diplomatique e assumido pelo programa MOST (Management of Social Transformations), da Unesco.
 
O objetivo do evento foi discutir o modelo econômico da globalização e a “ideologia do progresso”, bem como alternativas para o “pós-desenvolvimento”.

O Planeta vê-se hoje diante de uma encruzilhada: crise do sistema financeiro, crise da “economia real”, dilapidação dos recursos da Terra, mudanças climáticas…
 
Estudiosos de diversas nacionalidades e formações – autores dos ensaios contidos neste livro – posicionam-se ante o modelo de desenvolvimento empreendido pelas modernas sociedades capitalistas, assumindo teses talvez controversas para o leitor. Ao colocarem em xeque conceitos "normalmente aceitos" de desenvolvimento, pobreza/riqueza, necessidade e mesmo mundialização, eles estimulam uma reflexão fundamental sobre valores e concepções que norteiam as escolhas feitas, quer na esfera pública (governo, sociedade civil organizada, corporações), quer na esfera privada do cidadão individualmente.

ANTES DO DESENVOLVIMENTO

O desenvolvimento econômico costuma ser apresentado como uma panaceia. Não há um só governo que não faça de tudo para implantá-lo ou para impulsioná-lo o máximo possível, quaisquer que sejam as consequências sociais, ecológicas e morais. No entanto, por mais estranho que pareça, o termo quase nunca é definido. Certamente, ele deriva da noção de desenvolvimento em biologia, que descreve a formação do embrião no útero materno. Seu uso despudorado, mas hábil, subentende que os países pobres em bens materiais e técnicos, ou "subdesenvolvidos”, deveriam apenas aguardar a maturidade – portanto, mediante um processo totalmente natural – para transformarem-se em réplicas perfeitas dos Estados Unidos da América.
 
Na verdade, é impossível imaginar um processo menos natural do que esse. Para começar, a fim de se adaptar aos progressos considerados desejáveis, o desenvolvimento impõe contínuas mudanças de direção. Ora, talvez noventa e nove por cento da experiência humana no Planeta tenham ocorrido em comunidades rivais que, na verdade, se dedicavam à manutenção da estabilidade frente à mudança.
 
Assim, para os aborígenes da Austrália, o ethos, segundo William E. H. Stanner, era "a comunidade, a constância, o equilíbrio, a simetria e a regularidade […]. O fato de as coisas serem imutáveis, de a vida manter seu curso familiar e segura, e o que [tinha] valor aos olhos deles […]. Não [foi] apenas um povo desprovido de história, mas um povo capaz, por assim dizer, de vencer a história, de tornar-se anti-histórico em termos de espírito e de sentimento" (Stanner, 1956).
 
Para o homem moderno, isso sugere uma vida triste e monótona. Mas a História, por acaso, traz felicidade? Edward Gibbon, o famoso autor de Declínio e queda do império romano (1776), duvidava disso e, aparentemente com alguma razão, escrevia: "O que é a História senão o registro dos crimes, das loucuras e das desgraças da humanidade?"
 
O fato é que as sociedades tribais não deixaram de rebater a colonização e o desenvolvimento que lhes sucedeu. Seus membros se revelavam ferozmente hostis à própria transformação em operários assalariados. Daí as dificuldades que a Companhia das Minas de Carvão de Enugu, na Nigéria – entre tantas outras – encontrou para contratar mão-de-obra. Agwu Akpala (cf. I973) narra que seus dirigentes só conseguiam recrutá-los à força. Todos os dias, setecentos mineradores desapareciam e não eram mais vistos, a não ser que tivessem a infelicidade de serem recapturados. Então os diretores serviram-se dos chefes locais para obrigarem seus súditos a trabalhar, e esses chefes eram pagos por trabalhador recrutado. No início, aqueles que se recusavam a obedecer aos chefes eram multados, mas chegou-se até a condená-los a trabalhos forçados.
 
A razão é clara. O etnólogo Marshall Sahlins observa que "a economia tradicional se insere nas relações sociais. Sua base de ação não é a empresa, mas a família, a comunidade" (Sahlins, 1971). Para um homem tribal a família e a comunidade, bens inseparáveis do mundo natural, oferecem todos os benefícios. A incrível solidariedade que liga os membros entre si evita que passem fome ou caiam na miséria, a não ser que o grupo todo sofra esses males. E a pior punição para um membro que transgride a lei tradicional é, sem duvida, a expulsão da comunidade. Em 1970, nas ilhas Comores, garantiram-me que um wahamatsa condenado ao ostracismo e menosprezado era um homem morto.

Todavia, a família e o grupo só podem resistir e oferecer benefícios se cada um dos membros cumpre as tarefas que lhe cabem, tarefas que, numa sociedade moderna, dependem das instituições públicas e da economia formal. Trata-se da produção, da preparação e da distribuição dos alimentos, da educação das crianças, dos cuidados com as pessoas idosas e doentes, da organização e direção de inúmeros rituais, do respeito à lei, da manutenção da ordem e da condução dos assuntos comunitários. É importante sublinhar a gratuidade desses serviços resultantes do elaborado jogo de obrigações mútuas na família e no grupo.
 
Além disso, essas pessoas tinham a satisfação de saber que o futuro delas e de seus filhos estava assegurado, a não ser que ocorressem incidentes graves. Como já foi dito, sua arte de viver podia ser perpetuada. Moravam em pequenas aldeias praticamente autossuficientes, pouco expostas a descontinuidades, como as epidemias. Eram capazes de controlar as atividades suscetíveis de quebrar a estrutura social ou degradar o ambiente natural. Esse controle, em vez de ser exercido autoritariamente pelas instituições, derivava da cultura.

O grande antropólogo Gerardo Reichel-Dolmatoff demonstra, por exemplo, que a mitologia dos índios tucano, na Colômbia, legitima um sistema de proibições que refreia as tendências nocivas "ao crescimento da população, a exploração do ambiente físico e as relações interpessoais agressivas" (Reichel-Dolmatoff, 1977). Sem esse sistema eficaz de controle, tais sociedades não teriam podido sobreviver por séculos e milênios, muitíssimas vezes até a chegada dos brancos investidos de uma missão colonizadora.
 
A essa altura, compreende-se que o homem tribal, a não ser que fosse duramente obrigado, recusasse um trabalho entediante e sem-sentido, distante da família e do grupo, numa empresa comercial criada pelo poder colonial. Além disso, compreende-se que uma sociedade, cuja economia se baseava nas relações sociais ou, mais precisamente, em relações de parentesco, não se transformasse facilmente numa sociedade baseada em relações econômicas impessoais e associais.
 
É por isso que, normalmente, não se vendiam objetos, em beneficio próprio, a família ou a comunidade (que nada mais eram senão uma extensão da família). Na verdade, existe um profundo conflito entre comportamento familiar e comportamento mercantil. Isso é tão verdadeiro que o mercado só triunfa desintegrando as relações de parentesco tradicionais.
 
Tudo isso leva a pensar que sociedade tribal não se transformou por iniciativa própria. O desenvolvimento só pode derivar de uma descontinuidade, provocada por algo que, tempos atrás, era chamado de colonialismo, rebatizado depois "desenvolvimento econômico”, no interesse imediato das grandes companhias. Porque essas duas operações dividem um objetivo comum, satisfazer o apetite voraz dos industriais.
 
Nas décadas de 1880 e 1890, era esse, de fato, o objetivo da disputa frenética pelas colônias, objetivo enunciado claramente por seus ardorosos partidários. Assim afirmava Jules Ferry, em 1885, diante da Câmara dos Deputados da França: "Num pais como o nosso, cujo caráter mesmo da indústria está ligado a consideráveis exportações, a questão colonial é vital para as questões de mercado […]. Desse ponto de vista, a fundação de uma colônia representa a criação de um mercado”.
 
As companhias não exigiam apenas mercados, mas um vasto contingente de mão-de-obra e de matérias-primas a baixo custo – acrescentava, por sua vez, Cecil Rhodes, pai da Rodesia, e Paul Leroy Beaulieu, na influente obra A colonização nos povos modernos (1884). Daí, a grande aventura das colônias, até o final da Segunda Guerra Mundial.

Lá pelo fim das hostilidades, os homens de negócios e os políticos norte-americanos deram-se conta de que o colonialismo não seria mais sustentado no pós-guerra. A conferência de Bretton Woods, em 1944 já proclamava um substituto para esse sistema.
 
Adotar-se-ia o livre intercambio mundial, aparentemente com plena equidade. Mas, entre sócios tão desiguais, houve um retorno ao imperialismo econômico, concebido para levar os países do Terceiro Mundo para a órbita do sistema industrial ocidentaI, de modo que as grandes empresas pudessem dominá-lo de maneira bem mais eficaz, porém muito menos visível, em comparação com o colonialismo. Esse substituto seria chamado de "desenvolvimento econômico”.

O instrumento mais eficaz do colonialismo econômico consiste na ajuda aos países em via de desenvolvimento. A ajuda não foi concebida para difundir o bem-estar, mas serve para financiar as  infraestruturas necessárias ao duplo papel, tanto de mercado para o escoamento dos produtos das companhias ocidentais, quanto de fornecedor de mão-de-obra e matérias-primas a baixo custo. Ao mesmo tempo, a ajuda oferece um mercado instantâneo aos centros de estudo ocidentais chamados para criar essas  infraestruturas, argumento irresistível para os republicanos do Congresso dos Estados Unidos, que de outra forma a recusariam liminarmente.
 
A ajuda alimentar certamente se justifica; aliás, em caso de carestia, é até mesmo necessária. Mas não devemos esquecer que, no pós-guerra, todos os países africanos ainda eram autossuficientes, e só as politicas decididas no Exterior os tornaram incapazes de prover à alimentação do povo. Além disso, a ajuda alimentar é geralmente consumida nas grandes cidades e vendida no mercado negro, o que causa grandes prejuízos aos camponeses.
 
Não bastasse isso, a ajuda oferece ao complacente governo do país recém libertado, raramente ameaçado por outros países, as armas necessárias para dominar as inevitáveis revoltas das vítimas do desenvolvimento, cada vez mais numerosas.
 
Enfim e, sobretudo, a ajuda é eficaz para endividar os países que a recebem, o que fica inevitável tão logo a maior parte das infraestruturas projetadas deixa de ser rentável, enquanto os cleptocratas estabelecidos por nós extorquem até oitenta por cento do dinheiro investido.
 
E fácil controlar depois os países endividados, porque suas economias exportadoras, ainda em estado germinal, dependem da continuação da ajuda e ruiriam caso ela cessasse.
 
Para renovar os empréstimos, esses países devem concordar com as condições leoninas do Fundo Monetário InternacionaI: a impossibilidade de recusar os investimentos estrangeiros e a orientação de toda a atividade para as exportações. Até recentemente, eram-lhes vedadas despesas sociais que não contribuíssem para as exportações.
 
Todavia, os serviços públicos – educação, saúde e serviços ambientais – acabaram de ser abertos à concorrência mundial, reservando-se para grandes empresas nichos de investimemos favoráveis, no âmbito do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS), sob a égide da Organização Mundial do Comércio (OMC). Essas despesas tornaram-se automaticameme lícitas e aconselháveis.
 
Evidentemente, todo país submetido a semelhante regime aceita o aniquilamento da própria economia interna, que mantinha a população e oferecia-lhe os bens necessários, transformando-se num país de importadores-exportadores dirigidos por um grupo estrangeiro. E confia a condução de sua economia e de seu povo ao governo não-eleito do FMI, com sede em Washington, capital dos Estados Unidos.
 
Nesse ínterim, em 1995, depois da criação da OMC, as empresas sentiram-se suficientemente poderosas para aplicar o mesmo regime implacável não só aos países que tomam empréstimos do FMI, mas, em base permanente, ao mundo inteiro.
 
Aliás, como observa Helena Norberg-Hodge, os neocolonialistas não impõem o livre comércio, mas o "comércio forçado”.

Talvez a coisa mais devastadora seja a importação forçada, pelo Terceiro Mundo, de produtos alimentícios subvencionados. A Índia, por exemplo, conta com seiscentos milhões de pequenos agricultores, que dispõem de apenas um hectare, se não da metade disso. Uma minoria resistirá à concorrência, e a maioria terá de abandonar a terra para se refugiar nas favelas. Isso é excelente para o desenvolvimento, porque eles irão engrossar a massa ilimitada de mão-de-obra barata e mal-alimentada das cidades em expansão, liberando suas terras para as operações exportadoras da Cargill, da Monsanto e de outros gigantes do agronegócio. E a situação na China pode ser ainda pior.

A exportação obrigatória de alimentos, os quais até alguns anos atrás nutriam a população local, não é melhor. Nada poderia justificá-la num país como a Índia, cujos filhos sofrem, em graus diversos, de desnutrição, que deixa nas crianças marcas profundas no físico e na mente para o resto da vida.

No entanto, segundo os termos do Acordo Agrícola da OMC – por incrível que pareça –, se a demanda externa existe, é preciso exportar alimentos, mesmo em tempo de penúria interna. O governo, antes de "satisfazer a demanda interna”, deve encontrar, antes de tudo, tempo e meios para provar que está enfrentando uma carestia.

Aliás, ele só pode distribuir alimento comprado a preço de mercado. Nenhuma desnutrição generalizada pode perturbar o comércio internacional – assim como, no tempo da carestia do século XIX, não podia atrapalhar o comércio inglês na Irlanda.
 
O termo "livre comércio" não significa mais apenas o desaparecimento dos direitos alfandegários ou a obrigação de negociar, mas a eliminação de qualquer legislação que aumente os custos das multinacionais ou impeça sua expansão e seus privilégios, e isso, por mais cruciais que essas regras sejam para os pobres, os desempregados, os idosos, os doentes. Sem falar das economias locais e dos ecossistemas…
 
Pior ainda: as leis são sistematicamente substituídas por outras vantajosas para os grandes grupos. O mesmo ocorre no caso do reconhecimento mundial da legislação dos Estados Unidos sobre patentes, em particular sobre patentes remetentes aos seres vivos, sem os quais a indústria das biotecnologias não existiria; ou ainda no caso das disposições que protegem os investimentos estrangeiros e tornam ilegal sua expulsão do território, mesmo que destruam o meio ambiente ou a sociedade.

As multinacionais são, hoje, nossos patrões. O Planeta foi entregue a elas numa bandeja de prata, para que dele usufruam a seu bel prazer. Isso não acontece por acaso; trata-se da consequência necessária do desenvolvimento econômico no estágio a que chegou, que ainda não é o último.
 
O desenvolvimento econômico pode, assim, ser definido como o encadeamento de perturbações cada vez mais acentuadas impostas a uma sociedade, antes autossuficiente, com o objetivo de constituir um paraíso, pelo menos temporário, para as grandes empresas, em cujo seio elas aumentam, com toda liberdade, tanto sua competitividade quanto seus lucros, sem a mínima preocupação com os insuportáveis custos sociais, ecológicos, econômicos e humanos.
 
Digo temporário, porque a economia mundializada instaurada pelo desenvolvimento é, por natureza, muito instável e sua queda é inevitável, com toda probabilidade iminente. Esse será o estágio final. Comportará, certamente, muito sofrimento, mas poderá oferecer também a condição para que se evite uma catástrofe ecológica e, sobretudo, climática, que poderia tornar o Planeta inabitável mais rapidamente do que se pensa. Ademais, isso poderia incitar-nos a reconsiderar os pressupostos básicos do desenvolvimento econômico e, talvez, criar um mundo inspirado nas comunidades de um passado mais humano e mais duradouro.

(páginas 41 a 46)

O livro inclui textos de:

Claude Llena – Professor de Economia, Montpellier (França)
 
Edward Goldsmith – Fundador da revista The Ecologist, prêmio Nobel alternativo de 1991
 
François Brune – Professor, ensaísta e colaborador de Le Monde Diplomatique
 
François de Ravignan – Socioeconomista
 
Frederic Lemarchand – Pesquisador do Laboratório de Analise Sociológica e Antropológica do Risco (Lasar), Universidade de Caen
 
Gilbert Rist – Professor do Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento (lued). de Genebra
 
Hassan Zaoual – Economista, Universidade do Litoral Cote d'Opale (França). Vice-presidente de Cultures Europe (Bruxelas)
 
Ivan Illich – Autor de numerosos ensaios críticos sobre o desenvolvimento (1926-2002)
 
Jean-Pierre Berlan – Diretor de pesquisa do Instituto Nacional da Pesquisa Agronômica (INRA), França
 
José Bové – Sindicalista, membro da Confédération Paysanne
 
Majid Rahnema – Ex-diplomata, professor no Pitzer College, Claremont University, Califórnia
 
Marie-Dominique Perrot – Professora do Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento (lued), de Genebra
 
Maurice Decaillot – Especialista em Economia Social
 
Samuel Sajay – Doutor em Ciências da Administração, colaborador de Ivan Illich
 
Serge Latouche – Professor emérito de Economia na Universidade de Paris XI, co-presidente da associação La Ligne d 'Horizon

Suleymane M'Baye – Doutor em Economia



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